sábado, 15 de outubro de 2016

A sutil beleza de sermos duas.



Acordo com um pouco do seu cabelo sobre os meu olhos, ainda está escuro, viro de lado, você automaticamente me puxa para mais perto e sussurra uma promessa rouca sobre dormir com o cabelo preso na próxima noite, mas eu sei que não vai acontecer. Você sorri sabendo disso também, voltamos a dormir. Acordo pela segunda vez, mas já é dia agora, você está sorrindo com os olhos fechados, porque não quer dizer que já acordou, mas não sabe fingir que ainda está dormindo. Um beijo nos lábios, uma risada, a preguiça de levantar da cama. É um bom dia, um dia comum.


Corro para o banho, a gente acordou atrasada para variar. Peço um pouco do seu shampoo, porque esqueci de comprar o meu de novo. Você responde um “pode pegar” sem tirar os olhos do jornal. Escuto algo sobre você pegar uma blusa minha emprestada, aquela que você gosta, aquela que já é quase sua. Saímos um pouco rápido, eu para faculdade e você para o seu estágio, não tem beijo de despedida, nem mãos dadas no meio da rua, não é um lugar muito seguro, você me dá um abraço e saí tropeçando no próprio sapato. Ainda é um dia bom, um dia comum.  


Intervalo de aula, recebo uma foto de um gato abandonado na porta do prédio onde você faz estágio. “Nada de gato” eu respondo, “eu tenho alergia”. Você me manda outra foto, dessa vez você está abraçando o gato com um sorriso bonito no rosto, suspiro sorrindo, é uma batalha perdida, nós sabemos disso. Última aula, não vai dar tempo de almoçar em casa, tem trabalho para fazer, mas consegui 8 naquela prova que eu achei que não conseguiria fazer. Outra mensagem sua, vai chegar mais cedo da aula à noite e fazer arroz com legumes para o jantar. Continua sendo um dia bom.


Passo na farmácia antes de voltar para casa, são quase 22:00, mas preciso do antialérgico ou não vou gostar muito do novo bichinho. Lá a farmacêutica pergunta se o remédio é para mim, aceno com a cabeça e deixo escapar que minha namorada adotou um gatinho, um senhor atrás de mim faz um som de desagrado e murmura algo sobre o inferno, a farmacêutica dá um sorriso constrangido e pergunta “mais alguma coisa?” faço um sinal negativo com a cabeça e vou embora. Tem arroz gostoso em casa, uma namorada legal e um novo bichinho de estimação. Ainda é um dia bom.


Subo três lances de escada, o elevador me deixa meio sufocada, destranco a porta, você está assistindo alguma coisa na TV da sala, bom, assistindo não seria bem a palavra certa, suas mãos estão cobrindo seus olhos, não preciso nem me aproximar para saber que é um filme de terror, nunca tinha entendido como alguém pode insistir em gostar de algo que o assusta, mas ai eu conheci você. O gato está enrolado nas suas pernas, ele é tão bonito quanto na foto, vou viver de antialérgico, mas ele não vai embora. Você finalmente percebe que eu cheguei, levanta sorrindo, me dá um beijo rápido e olha para sacola da farmácia na minha mão, você sorri. “Acho que o nome dele pode ser Sérgio” eu digo, sempre foi uma batalha perdida e você sabia disso.


Já estamos quase dormindo quando você me conta sobre seu dia, sua professora amou sua pesquisa, seus colegas são engraçados, algum cara idiota gritou algo ruim sobre você ter uma namorada, mas seus amigos abraçaram você. Amanhã é sábado, é outro dia, vai ter almoço na casa da minha mãe que te adora e sua mãe ligou também, uma ligação rápida depois de seis meses, ela está entendendo melhor agora, isso é bom. Uma conversa rápida sobre o meu vestido que manchou na máquina, algo sobre um novo filme no cinema e as compras que temos que fazer, mesmo que eu deteste fazer compras. Dormimos e, mais uma vez, você esquece de prender o cabelo.

Não tem nada grande para ser contado hoje, foi só um dia comum, na rotina de duas pessoas comuns, que vivem como qualquer outra pessoa comum. É um dia comum, um dia bom que a gente tenta fazer ser bom todos os dias. O mundo ainda existe lá fora, ainda existem pessoas que gritam coisas ruins, ainda existem lugares em que um “somos amigas” soa mais seguro do que outra coisa, mas, por agora, a gente se esquenta aqui dentro e fica tudo bem lá fora, porque a gente sabe, muito bem, a sutil beleza de sermos duas, melhor do que ninguém.