quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Não dá para se esconder da mira dos que sempre apontam para o mesmo lugar.


O sangue nas manchetes é incolor, mas a gente bem sabe a cor que tem. As balas, que dizem perdidas, encontram sempre o mesmo alvo, a mesma cena, o mesmo enquadre. Nos punhos cerrados, no olhar atento, nos sorrisos desconfiados, a gente se reconhece de longe. Vocês nem de perto nos enxergam. A vida passa numa fileira de pó, não no cheirado, mas no vendido. Em um helicóptero passando por cima de uma casa, de uma escola, de uma vila. No condomínio ele para, na favela ele para uma vida. Não dá para se esconder da mira dos que sempre apontam para o mesmo lugar. Viver tem um preço gigante, morrer virou uma piada sem graça, uma que nos foi contada diversas vezes. Nossos olhos fecham cedo demais, nossos corpos sangram demais, nossas vidas valem menos. As grades que nos separam, entre seus muros e nossos presídios, são revestidas de silêncio. Vocês disseram que queriam nos ouvir, mas apagaram a nossa história. As carteiras das escolas contém o vazio daquilo que não se diz e ninguém conta. Vocês respondem presente, nós estamos presentes quando alguém, em ato de protesto, branda o nosso nome. Nossa história pede mais que uma matéria no jornal. Nossas vozes falham, nossa garganta aperta, mas continuamos. Continuamos apesar da sua troca de calçada, do chicote no supermercado, da confusão policial. Seguimos reconstruindo a história, ocupando lugares, existindo em universidades, mas dessa vez nas aulas ao invés do portão. Os nomes dos que não puderam estar seguem no grito daqueles que continuam vivos. Talvez o maior medo de vocês seja ver a gente recebendo a beca no lugar da pena.

domingo, 18 de março de 2018

Vocês não odeiam a Marielle porque ela ““defendia bandidos””


Vocês não odeiam a Marielle porque ela ““defendia bandidos”. Vocês odeiam a Marielle porque ela era preta, mulher, cresceu pobre e com poucas oportunidades. Vocês odeiam a Marielle porque ela fez faculdade, mestrado, participou da política e foi eleita democraticamente. Vocês odeiam a Marielle por ela ter defendido pauta LGBT, porque ela lutava por oportunidades para populações vulnerabilizadas, porque ela mostrava o que tem na favela e o que fazem com a favela todo dia.

Vocês odeiam a Marielle, porque ela mostrou uma realidade dolorida, que por ser tão diferente da de vocês, fez com que vocês fingissem que ela não existe. Vocês compartilham qualquer notícia falsa, sem base, fonte confiável, sem um pingo de coerência e argumento, para ver se diminui o sofrimento de quem se acostumou a olhar apenas para o próprio umbigo. Vocês odeiam a Marielle porque as pautas que ela levantava machucam seu ego, cutucam seu privilégio. E só de eu usar a palavra privilégio, vocês já odeiam esse texto.

Vocês relativizam a comoção com a morte da Marielle, não porque se importam com outras mortes que foram silenciadas e que não tiveram a mesma comoção, mas porque vocês não querem que a morte dela signifique algo, porque vocês estão acostumados a morte de mulher, ainda mais preta e favelada, não significar nada além de estatística. Ouvir os gritos do que aconteceu com ela obriga vocês a escutar algo que nunca precisaram ouvir.

Vocês não odeiam a Marielle, vocês odeiam ter que sair do mundo onde o “Grande irmão”, tem controle de tudo, sabe de tudo, faz tudo certo. Mexer em privilégio dói, tentar compreender, mesmo que pouco,=a realidade do outro, dói. Ver que instituições de poder em que você confia também são falhas, dói. Vocês não odeiam a Marielle, vocês odeiam o fato de que a morte dela força vocês a olharem para o lado, porque olhar para o lado dói.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Ninguém nunca me disse sobre a solidão que te cerca depois que você decide ir embora.






Ninguém nunca me disse sobre a solidão que te cerca depois que você decide ir embora. Eu nunca soube, nunca ouvi falar sobre como me afetaria sair de uma relação abusiva. A gente conversa muito sobre como identificar estas relações, mas pouco sobre as dificuldades de sair de uma delas, e o que acontece quando você finalmente sai. Não é fácil, muita gente diz o que você tem que fazer para sair daquele lugar, mas nunca o que acontece depois que você finalmente vai embora.

Ninguém nunca me contou sobre o sentimento de solidão, sobre como essas relações cansam suas amigas, sua família, todos a sua volta, porque eles cansam de ouvir você repetir os mesmos acontecimentos de novo e de novo, cansam de te dar conselhos e depois dizer que você não os segue. Como eles cansam desse discurso, até finalmente cansarem e desistirem de você. Ninguém nunca me disse que, mesmo depois de ter saído, existiram momentos em que eu me arrependeria de ter ido embora.

Porque as pessoas não sabem que a ardência de um tapa, muitas vezes, parece menor do que a solidão de ser entendida como uma vítima, de achar que ninguém mais irá amar você. Que estar neste lugar, sair de uma relação abusiva, é bancar tudo o que te aconteceu e torná-la ainda mais real. Ninguém nunca me disse que eu também sofreria depois de ir embora. É fácil confundir amor com agressão, principalmente quando você cresce aprendendo que alguns comportamentos são consequência de um amor muito grande, que algumas demonstrações de ciúmes e palavras ofensivas são sinais de preocupação. Porque depois de um tempo, a dor de um tapa, pelo menos a dor física, ela desaparece e todas as boa lembranças, porque sim, elas existem, reaparecem.

Não é fácil, eu não gosto de “ser a vítima” como muitos falam, na verdade, é exatamente este lugar que que não quero ocupar. Então você se mantém nessa relação. E fica tudo bem, extremamente bem, até ocorrer a agressão novamente, física ou psíquica, mas depois vem o carinho, a paz, as coisas boas, as incríveis promessas, as grandes declarações de amor. Então você acredita, você quer acreditar, mesmo que saiba que não é real. É um ciclo vicioso e às vezes eu sinto que ninguém entende. Todo mundo diz que você deve seguir em frente, mas ninguém pergunta se você tem para onde ir.

domingo, 10 de setembro de 2017

Odeio me preocupar com cada e-mail, cada mensagem, cada palavra que disse em uma reunião ou para um grupo de pessoas...





Às vezes, em dias completamente comuns, deito na minha cama e começo a me perguntar o porquê de me preocupar tanto com algumas coisas tão simples e começo a imaginar como seria minha vida se eu não me cobrasse tanto, ou não pensasse tanto sobre cada micro detalhe das coisas que faço e, principalmente, das coisas que digo. Odeio me preocupar com cada e-mail, cada mensagem, cada palavra que eu disse em uma reunião ou para um grupo de pessoas, mesmo que essa reunião tenha ocorrido há mil anos, detesto me preocupar tanto, mas me preocupo, constantemente. E às vezes, eu não consigo parar.


Tem dias em que está tudo bem, a vida está ótima e, por alguns momentos, até esqueço como é me preocupar tanto, o tempo todo. Mas aí, uma simples discussão em sala de aula, ou uma apresentação de trabalho na faculdade, com aquela professora que me deixa um pouco nervosa, me faz voltar para casa me arrependendo de algo que disse e então começa uma sucessão de pensamentos como: “não deveria ter feito aquela pergunta”, “não fui educada o bastante”, “não deveria ter dito aquilo”, “acho que fui muito grossa”, “tudo o que eu disse foi inútil e vergonhoso”, “eu deveria ter estudado mais”, “eu deveria ter ficado calada”. E às vezes eu penso tanto sobre isso que não consigo dormir, mesmo que eu queira e isso me assusta.


Algumas pessoas me dizem para esquecer, pois foi apenas uma discussão e ninguém vai ficar pensando se eu disse ou não algo de errado, mas não é tão simples assim, eu queria que fosse. Eu queria não ficar pensando sobre o assunto por tanto tempo. Eu termino de expor alguma ideia ou pensamento em sala, e me viro para perguntar para o meu colega do lado se o que eu disse foi muito ruim, se foi algo que deu para entender, se não pareceu tosco e vazio. E mesmo que meu colega me diga que foi bom, que ele entendeu o que eu disse, na maioria das vezes acabo me arrependendo de ter dito. De três frases que eu falo em uma conversa com pessoas que não conheço bem, duas me fazem ficar pensando que talvez fosse melhor se eu tivesse ficado em silêncio. 


Tem dias em que repenso cada erro que posso ter cometido, cada palavra que disse em uma simples conversa banal e me sinto cansada por ainda tentar. Mas, nestes dias, respiro fundo, fecho meus olhos um pouco e tento não chorar por isso, busco lembrar das vezes em que gostei de ter dito algo em público, de ter exposto algum pensamento, de ter contribuído para uma discussão em sala. E aí me lembro de uma conversa que tive recentemente, com uma professora que admiro muito. Ela me disse que ainda sente um frio na barriga quando vai dar aula, que ela não dorme direito antes do primeiro dia em uma turma nova e que também sente a famosa dor de barriga antes de falar alguma coisa. Ela é uma pessoa que quando fala, faz a turma inteira prestar atenção. Ela é uma das professoras mais incríveis que eu já tive e isso me faz pensar o quanto eu perderia se ela não falasse, mesmo com o frio na barriga, então, às vezes, eu falo também. 



Eu tento expor algum pensamento, mesmo que seja difícil. Mesmo que eu ainda fique pensando sobre isso três meses depois, tento escrever um e-mail e não ficar três horas procurando erros nele. E tem dias em que eu realmente consigo, e é uma vitória, mesmo que ninguém saiba, mesmo que seja particular. A maioria das vitórias são particulares. Talvez devêssemos começar a contar e dar mais valor à elas também. E eu sei que tem dias em que vou me arrepender de algo que disse, de algo que escrevi, e que vou ficar pensando de novo e de novo e de novo sobre isso, mas, por agora, me contento em conseguir escrever isso aqui, de compartilhar com alguns amigos e de entender que muitas pessoas, até as que considero incríveis, às vezes sentem um pouco o que é viver assim. E eu sei que melhora com o tempo. Está melhor agora. 



Então, o que aprendi em todos esses poucos anos, com todas essas experiências, arrependimentos, e pensamentos constantes às 03:00 da manhã, é que sempre vale a pena tentar prestar atenção quando um colega ou alguém está falando, mesmo que seja algo que eu não entenda, porque ninguém sabe o quão difícil pode ser para ele dizer alguma coisa. Eu sei o quão difícil é para mim. Então busco respirar fundo, continuar falando, continuar escrevendo, mesmo que minhas mãos fiquem tremendo, mesmo que talvez eu me arrependa, mesmo que eu apague esse texto algumas horas depois. Tento distrair minha cabeça e não pensar, tão profundamente, em coisas que, no fundo, não importam tanto assim. Cada dia é um pequena vitória e estou aprendendo, mesmo que aos poucos, a viver bem com elas.

















segunda-feira, 31 de julho de 2017

Ele não bate em você...




Ele não bate em você, ele só xinga suas amigas. Ele não bate em você, ele só te afasta da sua família. Ele não bate em você, ele só escolhe suas roupas. Ele não bate em você, ele só controla seus horários. Ele não bate em você, ele só sente ciúmes de tudo. Ele não bate em você, ele só decide onde você vai. Ele não bate em você, ele só te afastou dos maus amigos. Ele não bate em você, ele só mostra como você não é boa o suficiente. Ele não bate em você, ele só diz coisas ofensivas sobre seu corpo para te ajudar. Ele não bate em você. Ele disse que vai mudar. Ele não bate em você, foi só daquela vez, não foi? Ele não bate em você, ele estava bêbado. Ele não bate em você; você é que provoca. Ele não bate em você, ele só aperta seu braço com força de vez em quando. Ele não bate em você, ele só diz que faz tudo isso porque te ama. Ele não bate em você, mas às vezes parece que ele vai. Ele não bate em você, ele só te acha louca. Ele não bate em você, não é isso que importa? Ele não bate em você... mas isso não significa que ele não te machuque.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Querido amigo...




Querido amigo, eu não me importo com sua idade, com quantas graduações você tenha, em que local você trabalha, mas sim se você é capaz de olhar feito bobo quando se apaixona. Seja por seus amigos, por um amante, pela vida. Não me importo se você tem um carro do ano, um celular maneiro, uma balada todo fim de semana, mas sim se você consegue parar, conversar e prestar uma real atenção ao que seus amigos dizem.


Não me importo com quantas línguas diferentes você saiba, mas sim se conseguimos nos entender mesmo que nenhuma palavra seja dita. Não me importo com suas roupas da moda, mas sim se você respeita a pessoa que tira as dela para você. Não me importo se você tem um posicionamento político diferente do meu, mas sim se você é capaz de me ouvir, assim como eu sou capaz de te ouvir, sem querer entrar em uma disputa de quem está menos errado.


Eu não me importo com o que você pensa ser o melhor para sua vida, desde que você não queira impor seu modo de vida na vida de outras pessoas. Eu não estou aqui para mostrar como sou mais evoluída ou mais inteligente que você, mas sim para escutar, conversar e entender. Não me importo com a quantidade de conteúdo que você tenha decorado na ponta da língua, mas sim no que podemos aprender na mistura de nossos conhecimentos, de nossos encontros.


Não me importo que você tenha a solução mágica para todos os problemas do mundo, mas sim se você consegue ouvir uma dor sem querer consertá-la. Se você consegue entender que algumas dores existem sem a necessidade de um conserto. Me importo em saber se você consegue ouvir, amar, respeitar a existência de outra pessoa, mesmo que não entenda, assim como eu respeito a sua. Não me importo com o que você tem, mas sim com quem você é por dentro, porque quem eu sou por dentro é tudo o que tenho, com todo o meu coração, para te oferecer.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Porque “a gente” ficou… para que nós pudéssemos ir.


Nós tivemos nossos encontros, mansos, rasos, profundos, intensos, vivos, tristes, lindos. Nós nos amamos, mas do nosso jeito, imperfeito, estreito, intenso, mas calmo quando precisou. Nos machucamos feio, feito acidente de rua, daqueles que acontecem de madrugada e só a gente sabe que aconteceu. Mas nos curamos também, feito beijo que sara joelho ralado de criança. A gente foi criança, criança tentado ser adulto, achando que ser adulto é legal, mas não é. Até ser. A gente se chocou, grudou, beijou,  mas também se afastou, chorou, abraçou, puxou, empurrou, correu. A gente se interrompeu, porque precisava se interromper, porque precisava ver como um seria sem o outro, porque a gente precisava sobreviver,  e a gente sobreviveu. A gente sempre sobrevive. A gente se perdeu e se encontrou, só para então se perder de novo, para perceber que se perder tambem é bom. A gente saiu e voltou, foi e ficou. A gente mudou. A gente se pertenceu e se deixou. Só para um dia perceber, que a gente tinha deixado de ser a gente, para poder virar gente com outro alguém. A gente se abandonou, mesmo não querendo abandonar, a gente se deixou, porque tinha que deixar. A gente saiu, para então se reencontrar. Se reencontrar e sorrir,  sorrir mesmo sabendo que não era mais “a gente”. Porque “a gente” ficou… para que nós pudéssemos  ir.